Terminei o último post falando sobre a evolução do conceito de vendidagem até os dias de hoje, e como há duas concepções a respeito do mesmo fenômeno: uma boa vendidagem, aceita (ou ao menos tolerada) no meio social da Modelândia, e uma má vendidagem, que não tem esta mesma aceitação.
Antes de entrar em maiores detalhes nisto, no entanto, vale aqui fazer uma consideração (e também uma curta digressão pessoal) sobre um fator muito importante no desenvolvimento da vendidagem – o prêmio.
De uma certa forma, a existência do prêmio foi fundamental para o desenvolvimento da vendidagem, em formas que discutiremos adiante. No entanto, alguns modelos mais antigos (como a SiNUS, desde 2002) e principalmente desde 2005 (com a mentalidade prizeless is priceless do primeiro TEMAS), tem acumulado força um movimento em alguns modelos brasileiros de não distribuir prêmios aos delegados (ou delegações), optando por avaliá-los de alguma outra forma, tendo cada modelo seu próprio estilo de avaliação.
Como dito antes, o meio ambiente modeleiro propiciou o desenvolvimento da vendidagem, e os prêmios dados aos delegados considerados vendidos garantiu a sobrevivência deste comportamento. Mas ao contrário das expectativas, a eliminação dos prêmios em determinados modelos não acabou com a vendidagem – esperava-se que a eliminação dos prêmios acabaria com o tipo de vendidagem predatória que muitas vezes ilude os diretores e incomoda os delegados. Não foi bem isso que aconteceu.
Por conta disso, eu optei por dar um pouco menos de relevância aos prêmios em si para focar mais no desenvolvimento da vendidagem como um fenômeno de comportamento que prosperou in full force no ambiente modeleiro brasileiro. Certamente teve impacto, mas de alguns anos para cá perdeu bastante espaço em relação ao que tinha antes, e isso prova que a vendidagem consegue caminhar com as próprias pernas. Mesmo assim, o prêmio continua tendo uma influência indireta sobre a evolução da vendidagem, como voltarei a abordar em seguida.
Relembrando as variáveis da vendidagem que apresentamos no finalzinho do último post, o bom vendido é aquele que sabe utilizar os dons da retórica e da oratória, bem como o uso racional das regras e de documentos, para convencer e direcionar de maneira construtiva os debates para um rumo mais favorável à sua política externa. São basicamente as qualidades de qualquer bom delegado, com a diferença fundamental que o vendido sabe se apresentar, aparecer e ser lembrado como ninguém.
O mau vendido, por outro lado, embora faça uso dos mesmos artifícios, o faz de uma maneira destrutiva: ao invés de convencer, manipula sem rumo e abusa de dramatizações; deixa de usar as regras de forma moderada para abusá-las sem dó nem piedade; muitas vezes atropela sua própria política externa na crença, de certa forma maquiavélica, que irá atingir seus objetivos (isso quando não o faz por simples desejo de massagem no ego ou por diversão egoísta).
Estes são apenas estereótipos; como ninguém é perfeito nem uniformemente comportado, mesmo bons delegados às vezes escorregam nos excessos, e delegados abusados mostram lampejos de virtude. E é aí que mora o perigo.
Distinguir entre o bom e o mau vendido é uma atividade que requer alguma experiência prévia em modelos. Quem souber o funcionamento esperado de um comitê saberá entender quando que um delegado está contribuindo para o debate e compreendendo as regras e quando não está; desta forma, o diretor, que é a principal entidade responsável pela tarefa de identificar os bons e os maus, saberá como contornar eventuais delegados que prejudicam o debate (através de mecanismos próprios da simulação, como cartas de governo e intervenções) e premiar ou incentivar os delegados que contribuem algo para o debate.
Só que nem sempre nós podemos contar que todos os diretores em um modelo saberão como distinguir os bons dos maus, ou deixando de reconhecer bons delegados que atuam mais discretamente para dar atenção a delegados que mais se preocupam em aparecer do que contribuir com o debate. Isto é em parte decorrente da nossa própria percepção sobre o desenvolvimento de MUNs como duelos de oratória e retórica, e não como negociações diplomáticas propriamente ditas.
Apesar da minha preferência pessoal por avaliações individuais em detrimento de prêmios, eu tenho que admitir que os prêmios levam uma vantagem por serem um instrumento que tem a capacidade de tornar públicos os bons exemplos escolhidos por um bom diretor, consciente do que faz um bom delegado e, conseqüentemente, o bom vendido. O problema é que é uma faca de dois gumes: da mesma forma, os prêmios também podem valorizar erroneamente os maus vendidos, que participam de modelos exclusivamente com o intuito de ganhar um prêmio (deixando de lado a experiência acadêmica que é a própria simulação) e este tipo de conduta acaba por se espalhar, gerando mais exemplos de má vendidagem (que se espalha mais facilmente do que a boa vendidagem).
Para agravar a situação, talvez em razão da distância temporal entre o surgimento do termo "vendido" e o "boom" modeleiro no Brasil, muitos delegados (principalmente de ensino médio) se chamam de vendidos entre si, se orgulham de ser vendidos, colocam como objetivos em um modelo se comportar como um vendido. Needless to say, quando não existe uma concepção correta sobre o que é o vendido, sua origem, sua conotação e suas variações, os resultados podem ser desastrosos, com muitos delegados se desestimulando ou por não poderem se comportar como imaginam ser a forma "correta", ou por se sentirem intimidados por esses delegados que agem como maus vendidos sem saberem que o são.
O comportamento de um delegado em um modelo é algo completamente imprevisível; não sou psicólogo para saber dizer de que forma um delegado de primeira viagem, ou com vinte modelos nas costas, se comportará quando se deparar com determinada situação. A vendidagem tem tantas variações quanto há delegados dispostos em se empenhar em participar de modelos seriamente. É simplesmente impossível "controlar" os delegados para impedir algum comportamento deletério ao debate, não importa quantos treinamentos e clubes de simulação organizemos.
Tudo bem, se formos diplomatas nós lidaremos com colegas de trabalho com comportamentos menos "éticos", por assim dizer, ou com ameaças, ou com outras situações que fugiriam das regras comumente aceitas para discussões civilizadas. Mas há uma grande diferença neste tipo de situação para os exemplos de má vendidagem que vemos em modelos: no mundo real, diplomatas não têm (muita) margem para a criatividade ou para o exibicionismo, salvo em ocasiões raras, nem eles ganham "prêmios" por suas atuações (não no sentido modeleiro). Em modelos, e especialmente na Modelândia brasileira, um delegado que resolve dar asas à imaginação pode ser desastroso para um comitê, e ainda ser premiado por isso (ou pelo menos não ter como ser impedido) se cair sob a tutela de diretores inexperientes.
Como podemos ver, a situação é bem complexa. Os bons vendidos estão em extinção; maus vendidos são erroneamente premiados, e seu comportamento se multiplica por delegados mais novos e com pouca experiência; diretores que cresceram com esse ambiente de ambiguidade não conseguem distinguir o joio do trigo da vendidagem; bons delegados em potencial desistem de continuar na Modelândia por não terem espaço em um evento que deixou de ser uma simulação de negociações diplomáticas para ser um concurso de caras, poses e discursos.
Eu não saberia dizer se há uma solução rápida e/ou efetiva para esta situação. Se houver, gostaria de ouvi-las nos comentários, e no próximo post da série comentaremos sobre maiores desenvolvimentos.